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domingo, fevereiro 25, 2007

"Pensar os jornais" (1ª parte)

Faltava a 1ª parte. A 2ª está no post anterior.

"À nossa frente, diante dos nossos olhos, vários objectos que tomamos por indissociáveis do "nosso mundo" desaparecem, uns lenta, outros rapidamente, de um dia para o outro. Já vi desaparecerem as máquinas de escrever, os copiógrafos, a tipografia a chumbo, os selos do correio, o rolo de fotografias, o gravador de fita, as disquetes, o telex, o fax, o vídeo, etc, etc.

Olhando à nossa volta, outros objectos estão também a ir-se embora: que necessidade tenho eu de vir a esta estante de CD de música que gravei no iPod, podendo agora transportar toda a minha discoteca de aparelho para aparelho sem precisar de mais nada? Ao lado, os vídeos em VHS juntam-se aos discos em vinil e suponho que, a prazo, os DVD irão fazer-lhes companhia. Os selos, a mesma coisa, hoje já quase que não se usam no correio, para serem emitidos apenas para os coleccionadores. O dinheiro pouco a pouco é substituído pelos cartões e todos os cartões convergem para um só. A rápida mudança do tempo vivido dos objectos torna obsoleto qualquer filme de ficção científica que tenha mostradores analógicos em vez de digitais, porque nós sabemos que o futuro não substituiu apenas as alavancas por botões, mas acabou com os mostradores redondos em que um ponteiro podia indicar um drama quando se aproximava do vermelho. Hoje, só para os filmes de submarinos da Segunda Guerra Mundial.

E será assim para estes objectos que tenho à minha frente, feitos de muitos hectares de floresta, esta pilha de jornais? Estão também a ir-se embora, pouco a pouco, sem nós vermos, nem nós querermos? Talvez em geral, sim, em particular para os jornais feitos ao modelo antigo, entre o jornal generalista e aquilo que se chama hoje "imprensa de referência". Vejamos o caso português, em que há várias coisas evidentes que os jornais "de referência" não quiseram ver nem entender. Uma delas é que hoje um leitor em papel pode ler a "imprensa popular", opção que não tinha no passado.

Quando só havia jornais vergados ao peso de si próprios como instituições, protegidos por um mundo em que a institucionalização era garantida entre outras coisas pela censura - que eliminava o "popular" (sentimentos fortes, crime, inveja social, críticas aos poderosos, voyeurismo, violência em geral, medos, etc.) -, a "imprensa popular" não existia.
Acabada a censura e envelhecidos os modelos dos jornais "de referência" numa sociedade em mutação, em que a ascensão das massas aos consumos "culturais" se dava pela primeira vez, era natural que uma parte dos públicos forçados até então pela ausência de alternativa escolhessem. Já não tinham apenas o Diário de Notícias, ou o Diário de Lisboa, ou o Século, ou o Diário Popular, ou o Comércio do Porto, ou O Primeiro de Janeiro, mesmo com as suas nuances, mas podiam começar a comprar o Correio da Manhã e, mais tarde, a imprensa tablóide, que é uma outra variante de "imprensa popular". No Porto, sempre tiveram essa escolha porque tinham o Jornal de Notícias, de quem se dizia que, se se espremesse o jornal, escorria sangue, e talvez por isso é que a imprensa "de referência" de Lisboa nunca tivesse tido sucesso no Porto. (Deixo por agora de parte a concorrência com a televisão e rádio quanto à novidade noticiosa e à espectacularização).

Afastada da sensibilidade "popular", logo do público de massas, era inevitável uma perda significativa de leitores, agravada pelo aparecimento dos gratuitos. Mas a imprensa "de referência", durante muito tempo, que era também imprensa do Estado porque pública ou semipública, continuou num caminho autista até que a privatização começou a abanar os bolsos dos "donos" da imprensa com os elevados custos de jornais que perdiam leitores e, ao perderem leitores, perdiam publicidade. Quer o Diário de Notícias, quer o Público, de modo diferente, começaram a sentir há muito esta perda e ensaiaram diferentes respostas para a contrariar, cujo sucesso depende da correcção da análise dos problemas.

Uma observação sobre um reparo feito no Indústrias Culturais sobre "a colocação temporal do autismo dos media impressos. Primeiro, a imprensa de Estado (...) só existiu entre 1975 (...) e finais da década de 1980 (...). O Diário de Notícias foi desnacionalizado em Maio de 1991, ou seja, há 16 anos é propriedade privada. Entretanto, tinha surgido o Público (1990)." Tive em conta esta circunstância, mas penso que o Diário de Notícias só foi verdadeiramente des-nacionalizado quando foi comprado por Joaquim Oliveira e deixou a PT.

O Diário de Notícias tentou tornar-se num jornal forte na economia, investindo num suplemento diário, o Público tenta conquistar os novos leitores que estão a fugir para a rede. Quer um, quer outro valorizaram o desporto e outros temas "populares" mesmo antes das reformulações realizadas, num caso e noutro muito distintas nos seus alvos. O Diário de Notícias parece ter falhado, o Público ainda é cedo para ver.

No Bloguitica Paulo Gorjão insiste em três factores decisivos na decisão de compra de um jornal "de referência": "informação de qualidade; análise de qualidade; e, opinião de qualidade. Uma trilogia de 3Q." Tem razão em identificar estes factores em que uma cultura de exigência ainda está muito longe de chegar ás redacções. Só por si, se se fosse por aqui, obter-se-iam resultados, mas não se estancaria a crise da imprensa escrita ao modo tradicional. Penso que é preciso ir mais longe na análise da crise e pensar as questões de forma (as tecnologias, o grafismo, os meios) como questões de conteúdo e ir ainda mais longe entendendo que o "consumo" de informação está a mudar não só em exigência, mas num modo diferente de ler, procurar, analisar, aprender e divertir-se. Estas mudanças fazem migrar muita coisa que antes se fazia nos jornais para outros media e implicam um novo conceito de jornal, não apenas o antigo jornal melhorado. É sobre isso que escreverei para a semana.

Perdendo os públicos antigos, que se deslocaram para a "imprensa popular", colocava-se saber por que razão não se conquistavam os novos públicos. Havia sempre duas estratégias possíveis: ou tentar tornar "popular" (e "popular" e tablóide" não são a mesma coisa, porque há imprensa "popular" de qualidade, como é o caso do Correio da Manhã) o produto, como agora se diz, ou tentar roubar novos públicos a outros media que começam a crescer, em particular na juventude, ligados a outra combinação de media. Basta ver a combinação de media que os jovens consomem - jornais desportivos, revistas de moda em papel e blogues e sítios, incluindo os jornais, gratuitos em rede - para se perceber que não era tão simples como isso lá chegar, com um produto em papel. É que as novas elites numa sociedade de massas, em particular as elites com elevada educação formal, são também elas próprias um resultado da sociedade de massas, espectacularizadas, com gostos "culturais" muito mais "populares", habituadas a uma informação mais curta, fragmentada e utilitária. Na verdade, a sociedade de consumo de massas encolheu as elites, como nós as conhecíamos do passado, e gerou elites que o são socialmente, mas que, entre outra coisas, lêem menos e lêem diferente. O retrato das elites do presente dificilmente seria considerado como sendo de elite no passado. A tradição já não é o que era.

Reproduzo aqui uma nota que publiquei no Abrupto sobre a campanha publicitária do Público :

...parece voltada em parte para esse público da "cultura de blogue", apelando às suas referênciasculturais, para o trazer para a imprensa escrita em papel, o que é uma contradição nos seus termos. A contradição tem a ver com o facto dessa "cultura" ser estruturante e dos seus hábitos não serem "em papel". Não só os hábitos não são "em papel", mas sim no ecrã, como a forma de ler em volume e em profundidade (do hipertexto) é diferente da forma de ler em superfície e sequência (dos textos em papel, dos livros). Os hábitos são também mais de "ver" ( e de "ouvir") do que de "ler", o que explica o sucesso do YouTube como percursor de uma Rede em que se vai "ver" mais do que "ler".


Por isso, a campanha de publicidade resultará mais naqueles que chegaram a uma "cultura da Rede" mais do que a uma "cultura de blogue", ou seja, que não foram feitos "dentro" da "cultura de blogue", mas que ajudaram a fazê-la. Gente mais velha, com os pés em ambas as literacias, as do livro e jornal clássicos e as da Rede. Se foram estas as pessoas que deixaram de ler jornais pela décalage de interesses mais do que pelo facto de serem em papel, a campanha (e presumo que o jornal) terá sucesso, porque fará um produto mais próximo da sua agenda de interesses.

Os que já foram moldados pelos hábitos da Rede, os que se habituaram (como muitos adolescentes a chegarem ou nos primeiros anos na universidade) a olhar para o mundo no modo pick and choose típico dos blogues, nunca mais lerão em papel como se lia antes e não há campanha publicitária que os agarre. Vamos ver.

Podemos não gostar deste mundo, mas é o que existe lá fora. Neste processo, para onde foram os leitores dos jornais? Fugiram porque os jornais não lhes interessavam, ou porque já não precisam deles e não estão dispostos a pagar caro por aquilo que tem para eles apenas um utilidade marginal. Quem sobra é uma elite de uma elite, que continua a precisar e está disposta a pagar jornais de "referência", com a condição de que estes lhes forneçam informação de muito maior qualidade, o que, por regra, não acontece hoje. Só há uma maneira de os jornais competirem com os novos consumos mediáticos gerados pela televisão e pela rede, é serem muito diferentes do que eram no passado e serem únicos, ou seja, o que está ali não está em lado nenhum. E, mais fundamental ainda: não poder estar em nenhum outro lado.

(Continua) [no post abaixo]

(No Público de 17/2/2007)"

José Pacheco Pereira

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Aprendi muito

11:58 da manhã  

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